Qual o panorama do cancro do ovário em Portugal?

24/06/21
Qual o panorama do cancro do ovário em Portugal?

A propósito do Dia Mundial do Cancro do Ovárioa News Farma ouviu a Dr.ª Noémia Afonso, oncologista médica do Centro Hospitalar Universitário do Porto e presidente-eleita da Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO), quanto às conclusões do primeiro estudo nacional sobre o conhecimento e as perceções desta doença no país, “Cancro do Ovário em Portugal: Conhecimento e Perceções”. A especialista fez também um retrato do panorama da neoplasia em tempos de pandemia. Leia a entrevista completa.

News Farma (NF) | Assinalou-se no mês de maio, a dia 8, o Dia Mundial do Cancro do Ovário. Enquanto oncologista, quais os principais desafios que esta doença oncológica apresenta?

Dr.ª Noémia Afonso (NA) | O facto de não estar estabelecido nenhum programa de rastreio e também porque os sintomas surgem, ou só são valorizados, mais tardiamente, leva a que o cancro do ovário seja frequentemente diagnosticado numa fase avançada de doença, associada a prognóstico mais reservado. Assim, no sentido de aumentar os casos diagnosticados em fase mais precoce, devem estabelecer-se esforços no sentido de identificar a população de maior risco, nomeadamente pela história familiar de doença oncológica, de forma a instituir programa de vigilância regular, e também aumentar a consciencialização desta doença entre profissionais de saúde e na população em geral, promovendo o reconhecimento e valorização de sintomas que levem à suspeita da doença numa fase mais inicial. Por outro lado, e à semelhança da generalidade das doenças oncológicas, é necessário manter e estimular a investigação sobre o cancro do ovário, desde a sua epidemiologia, genética, biologia até à identificação de novas terapêuticas. O terceiro desafio, e não menos importante, é implementar a estratégia necessária para que todas as doentes com suspeita ou diagnóstico de cancro do ovário tenham acesso a avaliação em centros com experiência no tratamento cirúrgico e médico, e que a avaliação e tratamento sejam considerados prioritários, evitando qualquer atraso.

NF | A SPO, em conjunto com a Sociedade Portuguesa de Ginecologia Oncológica (SPG) e o Movimento Cancro do Ovário e outros Cancros Ginecológicos (Associação MOG), com o apoio da GSK, promoveram o primeiro estudo nacional sobre conhecimento e perceções do cancro do ovário em Portugal. Uma das principais conclusões é o desconhecimento generalizado da população portuguesa sobre esta doença. O que pode ser feito para aumentar a visibilidade e o conhecimento da população sobre cancro do ovário?

NA | A falta de literacia em saúde, e especificamente da literacia em Oncologia, mantém-se uma preocupação da SPO. Precisamos de uma população informada e responsável para termos melhores cuidados de saúde, com aumento dos diagnósticos em fase precoce e melhoria da sobrevivência associada a doenças oncológicas. Atualmente, os meios de difusão de informação são muitos, e deve ser promovido o recurso a todos, de forma a chegarmos aos diversos grupos etários, culturais e sociais. A colaboração entre instituições hospitalares, sociedades científicas, associações de doentes é fundamental, mas o apoio de entidades com experiência na divulgação de informação, seja através da radio, da televisão, da internet, de jornais ou revistas é necessária para conseguirmos chegar à população de forma global. Assim, é um esforço conjunto, de todos estes intervenientes, mas é reconhecidamente um investimento com retorno incomparável na melhoria dos cuidados oncológicos.

NF | Este desconhecimento generalizado, em que 85% da população desconhece os sintomas e mais de 35% não sabe quais os fatores de risco, pode ser um dos fatores que explicam a dificuldade do diagnóstico atempado da doença?

NA | Poderá não explicar a totalidade do problema, uma vez que o cancro do ovário pode ser “silencioso”, ou com sintomas “ligeiros” ou “inespecíficos”, até uma fase avançada de doença, mas seguramente contribui para esse atraso. Ou seja, o melhor conhecimento da realidade do cancro do ovário conduz a uma maior consciência da doença e ao recurso mais frequente e atempado a cuidados de saúde, em caso de queixas sugestivas ou persistentes.

NF | O cancro do ovário é o sétimo tipo de cancro mais comum entre as mulheres e a oitava causa mais frequente de morte por doença oncológica entre elas. Estes números estão a aumentar e merecem maior atenção por parte de todos nós?

NA | Além de tudo o que foi dito, relembra-se que o cancro do ovário, sobretudo em fase avançada, se associa a prognóstico reservado, e mesmo com os importantes desenvolvimentos recentes e a introdução novas terapêuticas, a sobrevivência da globalidade das doentes é ainda insatisfatória. Assim, mantém-se um importante problema de saúde que merece investimento em termos de consciencialização da população e de investigação para obtermos melhores resultados. No entanto, o maior número de diagnósticos pode também estar associado com uma maior procura de cuidados de saúde e eventualmente maior capacidade diagnóstica dos serviços de saúde. 

NF | Segundo o estudo, cerca de 2/3 da população recorre ao médico de família, como primeiro contacto, quando suspeita de uma doença oncológica. Este é o caminho e a decisão mais acertada, na sua opinião?

NA | Os cuidados de saúde primários (CSP) são o pilar da saúde da população e extremamente importantes em Portugal.  Se se conseguir um fácil acesso aos CSP, estes serão a forma mais imediata para uma avaliação e orientação médica. No entanto, devem ser facilitados aos CSP o apoio dos cuidados de saúde secundários ou hospitalares, em caso de suspeita de doença oncológica, de forma imediata. O apoio de especialistas, ginecologistas ou oncologistas, aos médicos de família, não apenas na avaliação e orientação de doentes, mas também na partilha e atualização de conhecimentos, neste caso sobre cancro do ovário, é muito importante. É necessário que os diferentes serviços de saúde se articulem de forma coordenada, sendo aconselhável a criação de grupos de trabalho que envolvam os diversos níveis de cuidados. Este é também um dos objetivos da SPO.

NF | Relativamente aos tempos que vivemos, segundo o estudo, mais de 90% da população portuguesa – nove em cada dez pessoas – acredita que a pandemia está a originar atrasos nos diagnósticos de cancro do ovário. Do seu conhecimento, esta perceção está de acordo com a realidade?

NA | É uma possibilidade que não podemos ignorar. A suspensão dos exames de rastreio do cancro da mama, do colo do útero e do colón, terá impacto nos diagnósticos de cancro e, sobretudo, no momento do diagnóstico, podendo favorecer o aumento do número de casos diagnosticados em estadio mais avançado. Por outro lado, a dificuldade em manter a atividade regular dos CSP e dos hospitais, durante as vagas de pandemia COVID 19, condicionou, por um lado, maior dificuldade no acesso aos cuidados de saúde e, por outro, algum receio da população em dirigir-se a instituições de saúde, em situação de urgência e a consultas de rotina, como as consultas de Ginecologia, o que poderá ter causado atraso de diagnóstico de cancro, nomeadamente do ovário. No entanto, o real impacto na sobrevivência de doentes oncológicos só será percetível mais tarde. De momento, os esforços devem ser para recuperar, na medida do possível, a atividade normal e reorganizar os serviços de saúde para que, numa potencial nova vaga, os cuidados relacionados com a doença oncológica, seja de rastreio, de diagnóstico ou de tratamento, mantenham a sua atividade.

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