"A insulina oferece a possibilidade de viver com qualidade de vida, até a cura ser descoberta"

13/08/21
"A insulina oferece a possibilidade de viver com qualidade de vida, até a cura ser descoberta"

No âmbito da sessão “Insulina: 100 anos a salvar vidas!’’, que celebra a descoberta centenária da insulina, o Dr. Hélder Martins, presidente da Associação Mellitus Criança, e membro do conselho fiscal da Plataforma Saúde em Diálogo, em entrevista à News Farma, dissertou sobre a inovação dos cuidados de saúde ao doente com diabetes, sobre o papel do farmacêutico nestes cuidados, e sobre a literacia adjacente à patologia.

News Farma (NF) | Nestes cem anos de vida, que inovações destaca no que toca a insulina e o tratamento da pessoa com diabetes?

Dr. Hélder Martins (HM) | A descoberta da insulina foi um marco impactante e revolucionário na vida das pessoas que vivem com diabetes. Até à sua descoberta, há 100 anos, não havia esperança de vida, a pessoa quando diagnosticada com diabetes sabia à partida que não tinha muito tempo de vida. Esta era a dura realidade. O “tratamento” era basicamente ao nível de restrições alimentares muito rígidas que apenas iriam prolongar o inevitável. As pessoas faleciam com esta patologia, era um dado adquirido, não havia cura nem tratamento.

Com a descoberta da insulina a 27 de julho de 1921 e com a primeira administração em humanos, em janeiro de 1922, os resultados obtidos permitiram trazer às pessoas uma esperança e uma melhoria significativa na sua qualidade de vida.

Com base na constante pesquisa e no acreditar que poderia haver melhorias no seu tratamento foi possível inovar. Hoje em dia, por exemplo, temos insulinas lentas, insulinas de ação intermédia, insulinas rápidas e ultrarrápidas. Com estas inovações, as pessoas com diabetes, principalmente as que têm diabetes mellitus tipo 1 (insulinodependentes), podem ter uma vida perfeitamente normal, não existindo restrições alimentares ou outras limitações. No entanto e como qualquer outra pessoa, é aconselhável optar por uma alimentação saudável e equilibrada, e sim podem comer doces, ir a festas e viver a vida.

O nosso pâncreas está constantemente a produzir insulina, chamamos insulina basal e nas pessoas com diabetes, a insulina lenta simula a insulina basal, que o nosso organismo produz para viver, por norma dura 24 horas no organismo e tem de ser sempre administrada à mesma hora e todos os dias. Existe outro tipo com menos duração, por exemplo, a insulina intermédia que tem efeito durante 12 horas, logo tem de ser administrada duas vezes ao dia, sempre à mesma hora. As insulinas rápidas e ultrarrápidas deverão ser administradas antes das refeições para fazer face aos hidratos de carbono que são ingeridos, os tipos de insulina são diferentes entre si devido ao início de atuação, sendo que, por norma, uma insulina rápida começa a fazer efeito entre 15 a 20 minutos após ser administrada e as ultrarrápidas começam a fazer efeito entre 10 a 15 minutos.

A inovação não se fez apenas ao nível da insulina, mas também ao nível da sua administração e ao nível da monitorização dos valores de glicémia. Antigamente, era administrada através de injeções, nos dias de hoje, temos as canetas de insulina, o sistema de perfusão subcutânea contínua de insulina (bombas de insulina) e os chamados pâncreas artificiais que evitam, em situações normais, as injeções de insulina. Com as bombas de insulina, as pessoas têm muito mais liberdade, existindo estudos que indicam que melhoram os níveis de glicémia e hemoglobina A1c. Relativamente à monitorização, antigamente os valores de glicémia eram verificados através da urina, e por isso, pouco precisos, posteriormente o controlo passou a ser feito no sangue, mas era necessária uma grande quantidade de sangue para determinar estes valores, levando a que o tempo de espera pelos resultados fosse bastante elevado. No presente, é apenas necessária uma pequena gota de sangue (teste glicémico) e os resultados são obtidos ao fim de 5 segundos. Recentemente surgiu uma nova tecnologia, a monitorização flash, que evita os testes glicémicos, uma vez que os valores são medidos no líquido intersticial. Com este sistema evitamos, em situações normais, as picadas nos dedos e conseguimos também averiguar as tendências glicémicas.

É ainda necessário inovar ao nível da prevenção e da informação para desmistificar a diabetes mellitus na sociedade, é preciso colocar este tema na ordem do dia, esse papel passa pelo Estado e pelas Associações, que devem manter a chama viva e nunca desistir.

Em 100 anos evoluímos muito no tratamento e na monitorização da diabetes, temos uma boa literacia nesta área e, hoje em dia, uma pessoa com diabetes tem uma vida completamente normal, com menos preconceitos e mais qualidade. Podemos mesmo afirmar que a maior inovação da insulina foi dar vida e esperança às pessoas.

 

NF | Qual tem sido o papel das associações de doentes no que toca a garantia do acesso universal à insulina?

HM | Em primeiro lugar, é nosso dever alertar e desmistificar a população para o facto de a insulina não ser a cura para as pessoas com diabetes, em especial na diabetes mellitus tipo1. A insulina oferece a possibilidade de estar vivo, com qualidade de vida, até a cura ser descoberta.

O papel das Associações tem sido fundamental na garantia do acesso à insulina, como sabemos a insulina é comparticipada a 100% pelo estado português e isso ficou a dever-se e muito à APDP (Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal) e à vontade do Governo português. Noutros países, a insulina não é comparticipada, por causa disso existem casos de situações bem graves que levaram à morte de cidadãos desses mesmos países. Em pleno século XXI, 100 anos após a sua descoberta, é inaceitável que alguém morra por falta de insulina. Em Portugal, a situação é diferente para melhor, e um dos objetivos das Associações é que a insulina continue a ser gratuita para todos, pois é um bem essencial à vida. Sem insulina não existe sobrevivência.

As Associações devem continuar a garantir que a insulina esteja acessível a todos no território nacional e ilhas, mas também garantir que todos estejam no mesmo patamar, quer a nível de cuidados de saúde, quer de informação e educação. Desmistificar a diabetes na sociedade, principalmente na comunidade escolar, em todos os ciclos, é muito importante e imprescindível.

O papel das Associações de pessoas com diabetes passa também pela sensibilização da população a importância da prevenção e da desmistificação da diabetes em Portugal.

A nossa missão passa ainda por informar o Governo dos custos associados ao facto de a diabetes continuar a não ser uma prioridade em termos de saúde pública. É fundamental que se promova uma campanha para colocar a diabetes na ordem do dia, de forma a prevenir e reduzir custos desnecessários associados a complicações por doença não controlada, que resultam em internamentos e amputações. É importante todos sabermos quais são as complicações que advém de uma diabetes não controlada, principalmente junto dos jovens com diabetes e dos pais, cujos filhos foram recentemente diagnosticados com diabetes mellitus tipo 1. Não podemos nem devemos esconder que a diabetes tem uma prevalência muito significativa em Portugal e, infelizmente, a tendência é de subida, fruto do estilo de vida, sedentarismo e alimentação que fazemos. Acreditamos que promover estilos de vida saudáveis, mudar mentalidades (mesmo que enraizadas), alterar costumes e incentivar a prática do exercício físico são os desafios para garantirmos melhores resultados em relação à diabetes.

 

NF | E qual o papel do farmacêutico, no que toca a investigação e a melhoria dos cuidados de saúde associados à diabetes?

HM | O papel do farmacêutico no que toca à investigação tem sido preponderante na melhoria da qualidade de vida das pessoas com diabetes. Como referido anteriormente, nos últimos anos, existiram avanços significativos em relação às insulinas, ao seu tempo de ação e duração. Avanços importantes em aparelhos que medem e monitorizam os valores de glicémia, bem como ao nível da administração da própria insulina. É de louvar que continue a existir investigação para que a vida das pessoas com diabetes seja o mais normal e natural possível. Não esquecendo as pessoas que vivem a diabetes, como os pais e familiares, também eles beneficiam de ter acesso a estes desenvolvimentos. Toda esta investigação afeta positivamente a melhoria dos cuidados de saúde associados à diabetes, uma vez que a diabetes é uma patologia que tem de ser monitorizada e controlada regularmente durante toda a vida.

Para além disso, pela confiança e pela proximidade que as farmácias e os farmacêuticos têm com a população, estes também desempenham um papel muito importante na promoção da literacia sobre a doença, prestando aconselhamento sobre os estilos de vida a adotar, nomeadamente em termos de alimentação saudável e prática de atividade física regular, mas também na identificação precoce de pessoas com risco de desenvolver diabetes. Os farmacêuticos assumem um papel deveras importante ao apoiarem os doentes com diabetes (e os seus familiares) na gestão da doença através da medição de parâmetros, do apoio na gestão da medicação e no aconselhando em visitar um médico sempre que necessário.

 

NF | Considera que existe uma boa literacia em saúde para a prevenção e a gestão da diabetes?

HM | Acreditamos que existem já boas fontes de informação sobre prevenção e gestão da diabetes, contudo estas necessitam de ser mais divulgadas e estar também mais acessíveis à população. Saber utilizar a boa informação que se vai produzindo sobre o tema e ajudar a divulgá-la é uma das ferramentas que temos em nosso poder para prevenir e combater a diabetes, bem como desmitificar as ideias pré-concebidas que perduram na sociedade. Temos de ter uma posição ativa enquanto cidadãos no que toca a esta patologia, pois a diabetes exige, por parte de todos os intervenientes, uma aprendizagem diária e um acompanhamento constante para que o seu controlo / tratamento seja o mais eficaz.

É fundamental que sejam dinamizadas campanhas de informação para a prevenção da diabetes direcionadas e adaptadas a todas as faixas etárias, uma vez que o estilo de vida e os hábitos alimentares de hoje, o número de jovens e jovens adultos com diabetes mellitus tipo 2, associada diretamente a estilos de vida, tem vindo a aumentar e isso pode ser evitado. Existem cada vez mais casos de diabetes em jovens, o que seria impensável há uns anos atrás. Portanto, é fulcral promover a literacia em saúde para a prevenção da diabetes, quer nas escolas, nas empresas, mas também nos lares de idosos, através de ações de sensibilização, aqui o papel das Associações de Pessoas com Doença é fundamental e imprescindível.

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