O adeus à Prof.ª Doutora Odette Ferreira. “Não tenho anos. Só tenho vida”

08/10/18
O adeus à Prof.ª Doutora Odette Ferreira. “Não tenho anos. Só tenho vida”

A Prof.ª Doutora Maria Odette Santos-Ferreira, pioneira na investigação do VIH e mentora do programa de troca de seringas, lançado nos anos 90, faleceu este domingo, 7 de outubro, aos 93 anos de idade. Destemida, determinada e imensamente curiosa, lutou contra o VIH/SIDA no laboratório e no terreno. Tanto a biografia “Uma luta, uma vida”, como o currículo com mais de 100 páginas, não são suficientes para descrever a sua atividade de investigadora. Recordamos a entrevista que a Prof.ª Doutora Odette Ferreira concedeu à News Farma no final do ano de 2016.

Sempre ativa, a investigadora manteve durante muitos anos o seu gabinete na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) e continuou a dar aulas após a reforma como voluntária. Além do trabalho científico, liderou a Comissão Nacional de Luta Contra a Sida.

“A pessoa, até morrer, tem de estar atualizada e, para isso, deve estudar e ter ambição”, sublinhava a Prof.ª Doutora Odette Ferreira na sua entrevista de vida à News Farma. A investigadora iniciou a sua vida académica na FFUL, onde se especializou em análises clínicas, aparecendo mais tarde a oportunidade de concorrer a um estágio no Instituto Pasteur. Foi desta forma que a especialista teve acesso ao curso de Microbiologia Sistemática, com o objetivo de mais tarde fazer o doutoramento. “O Instituto Pasteur era o maior centro de investigação do mundo, principalmente na área da Microbiologia e Imunologia. Dediquei-me profundamente e constatei que era o que realmente queria para a minha carreira. Através dos conhecimentos adquiridos, trouxe para a Faculdade de Farmácia toda a modernização que tinha apreendido e fiz uma verdadeira revolução no departamento de Microbiologia. Nesta altura pensei que ou estagnaria ou avançaria na área da investigação, com a realização do doutoramento em França. Também incentivei os meus assistentes a obterem uma especialização e ajudei na obtenção de bolsas. Antes disso, pedi que cada um escolhesse uma área e foi dessa forma que foram criadas as vertentes de Microbiologia, Bacteriologia, Virologia e Parasitologia dentro do mesmo departamento. Sinto um imenso orgulho por ter conseguido constituir uma equipa de investigação. Prossegui com a minha carreira de investigação em paralelo com os meus assistentes”.

Os primeiros estudos seroepidemiológicos começaram em 1984, em parceria com o Departamento de Microbiologia da FFUL, sendo decisivo para o seu envolvimento na descoberta do VIH-2. Para a Prof.ª Doutora Odette Ferreira, foi “um orgulho imenso, não como mulher, mas como farmacêutica. Na verdade, sempre houve uma ideia errada de que o farmacêutico pertencia à farmácia comunitária e que não que era um profissional capaz de desenvolver estudos e dessa forma contribuir para uma melhoria da saúde pública. Quando optei pelo curso de Ciências Farmacêuticas fiz um juramento: que seria capaz de demonstrar que um farmacêutico era tão bom ou melhor que qualquer outro licenciado na área da Saúde”.

“Sempre defendi que a infeção por VIH seria uma infeção crónica, precisamente porque era possível controlá-la, através dos antirretrovirais que começaram a surgir e que eram capazes de impedir a replicação do vírus. Com a investigação, primeiro, conseguiu-se a identificação do agente, sendo esta a descoberta mais rápida da história da Microbiologia pela equipa de Luc Montaigner. Depois desta conquista, verificámos o modo como esse agente funcionava e ficámos a conhecer o ciclo replicativo do vírus e, ao conhecermos todas as fases de replicação do vírus, tínhamos na mão a possibilidade de tentar arranjar medicamentos que impedissem a sua replicação, logo a destruição do sistema imunitário. No início, apenas havia o AZT mas, à medida que íamos descobrindo a citopatogénese do VIH, a indústria aproveitava para investigar novos fármacos. Não conseguimos, ainda, desenvolver medicamentos capazes de curar a infeção VIH/SIDA ou eliminar o vírus, contudo conseguimos que não se replicasse e, não se replicando, a infeção ficaria controlada”, frisava a especialista.

À data desta entrevista, a Prof.ª Doutora Odette Ferreira ainda trabalhava na área da SIDA e, mais especificamente, com o VIH2. A investigadora continuava na busca dos seus porquês, tendo ainda “um grupo de investigação que trabalha principalmente com o VIH-2. Temos a maior quantidade de vírus guardados, assim como uma viroteca e uma seroteca, que serve de instrumento de trabalho para outras equipas de investigação”. A especialista ia todos os dias para a Faculdade, “para não perder o contacto com os investigadores”, mas era “mais Relações Públicas, devido à facilidade nos contactos”. Trabalhou com todos os hospitais e tinha relações estreitas com os infecciologistas.

“Não tenho anos, só tenho vida. Parei nos 35 anos. Ou seja, tenho a mesma mentalidade que tinha nessa altura. Na verdade, não tenho a noção da realidade dos anos. O mal é as pessoas pararem. Se continuarem em atividade, o cérebro não envelhece. Rita Levi-Montalcini, Prémio Nobel da Medicina, morreu com 104 anos e defendia que é possível a regeneração e o nascimento de novos neurónios. Na verdade, o corpo pode envelhecer e não temos controlo nesse processo, mas o envelhecimento do cérebro pode ser controlado por nós próprios!”. Uma lição de vida deixada pela Prof.ª Doutora Odette Ferreira.

Leia a entrevista na íntegra em www.store.nesfarma.pt

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